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(A)Normalização das crianças

(A)Normalização das crianças

Se pensarmos nas cores (azul, preto, amarelo), ou nas marcas da moda, se pensarmos no futuro (e na forma como o tentamos prever), ou na forma como categorizamos as pessoas (alto/baixo; simpático/antipático, por exemplo), rapidamente damos conta que o nosso cérebro se especializou na criação de algoritmos, que são uma espécie de matéria prima na qual baseamos a nossa percepção daquilo que nos rodeia; é com base neles que tentamos dominar o desconhecido, procurando prever, controlar ou modificar o mundo. Daqui resulta aquilo que são as normas, que por sua vez se baseiam em padrões que nos permitem categorizar os fenómenos como estando dentro da norma (normais) ou fora da norma (anormais).

 

Também aplicamos estes algoritmos às pessoas, e assim desenvolveram-se um conjunto de critérios que permitem categorizar cada um de acordo com um conjunto pré-estabelecido de padrões e normas, que funcionam como uma espécie de sinalização, baseada em determinados marcos de desenvolvimento pelos quais todos teremos de passar; e nesse particular, ou se está dentro da norma, ou se está fora da norma; parece um processo relativamente inócuo ou até benéfico, na medida em que permite, por exemplo, definir critérios de avaliação e intervenção quando se trata de questões associadas à saúde física ou mental. O problema não está no processo, mas sim quando este é de tal forma excessivo, padronizado e rigoroso que nada parece escapar a estas lógicas de normalidade ou anormalidade.

 

Por exemplo, quando se trata do desenvolvimento, educação e crescimento das crianças, os pais mostram-se muito tranquilos quando o seu filho encaixa nos padrões daquilo que foi definido como sendo normal; ficam sossegados, porque isso torna os modelos educativos mais previsíveis e teoricamente mais fácies de aplicar; mas, como tudo, existe também o reverso da medalha, que neste caso se revela no exagero, assistindo-se actualmente a um aumento considerável de procura de consultas de psicologia, consultas de desenvolvimento e pedopsiquiatria, onde pais mais ou menos assustados com os comportamentos dos seus filhos, procuram perceber se obedece aos padrões definidos, ou se pelo contrário, foge à norma, e nesse caso se tem alguma doença (se está fora do padrão considerado normal).

 

Estes são pais mais ou menos aflitos e confusos, que trazem quase sempre pela mão uma criança ou jovem, também ele mais ou menos confuso e assustado, porque imagina que irá ser submetido a uma qualquer avaliação, ou nos casos das crianças mais pequenas, porque acham que estão na presença de um médico e que não tarda irão levar a famosa “pica”.

 

É sempre com grande curiosidade que recebo crianças no meu consultório; a primeira coisa que procuro perceber é “quem são estes os pais desta criança?”, “de onde vêm?”, “como chegaram até mim?”, o que os preocupa, como interagem com o filho, porque decidiram consultar-me e o que desejam que aconteça.

 

Sei que antes de os avaliar, já fui avaliado e sujeito a um processo de filtragem; de certeza que a criança irá continuar com este processo de avaliação a cada instante que estiver comigo; é um sinal de curiosidade e inteligência que admiro bastante, assim como a sua naturalidade e espontaneidade, a ausência de travões, que lhes permite dizerem se gostam ou não de mim, se querem estar ali ou até mesmo se querem ou não falar comigo.

 

Fico sempre a pensar no estilo de vida de algumas destas crianças; sem tempo para brincar, para se divertir, sem tempo para estarem com os pais de forma prazerosa e que lhes permita conhecer de forma íntima com quem vivem, quem são os seus avós, tios ou amigos; uma coisa que me espanta é verificar que muitas nem sequer sabem o que fazem os seus pais na sua vida profissional.

 

Perante isto, não me admira que em determinadas situações tenham comportamentos, atitudes, formas de estar ou pensar que teoricamente fogem da norma, deixando os seus pais e educadores atrapalhados e com os cabelos em pé.

 

É habitual os pais dizerem-me que têm medo que o seu filho esteja doente, que não conseguem que fale com eles, que tem comportamentos fora do esperado… também é frequente perguntarem-me se aquilo que os filhos fazem está certo ou errado, se é ou não normal; precisam que os tranquilize (usualmente é prejudicial para as crianças terem pais preocupados, que analisam tudo à luz dessa preocupação); no fundo às vezes parecem procurar um diagnóstico que torne mais fácil perceber e posteriormente desenvolver um plano de intervenção.

 

É também por isso que actualmente parece existir uma espécie de epidemia de diagnósticos de doenças psicológicas nas crianças; felizmente a ciência na qual se baseia a Psicologia e a Saúde Mental tem evoluído bastante e concerteza muitos desses diagnósticos estão corretos e fazem sentido; por outro lado alguns resultarão do foco excessivo que pais e profissionais de saúde colocam na categorização como doenças de alguns comportamentos, outrora normais e que os mais velhos se recordam como sendo naturais. É curioso ver, por exemplo, como os famosos “bichos carpinteiros”, actualmente colocam pais e educadores em sobressalto; costumo dizer que os “bichos carpinteiros” de hoje em dia, estão de tal forma sujeitos à pressão de horários, regras, actividades e deveres, que qualquer movimento que façam será sempre considerado excessivo.

 

Importa antes de mais esclarecer que o conceito de Doença é isso mesmo, um padrão de sintomas que quando ocorrem em conjunto permitem definir a pessoa como estando doente, mas isso por si só são apenas categorias de diagnóstico, não definem ninguém enquanto pessoa e muito menos enquanto normal ou (a)normal.

 

É por isso que sou bastante cauteloso quando se trata de categorizar uma criança através de critérios diagnósticos; procuro sempre conhecer bem os seus pais, saber quem é a restante família, que tipo de educadores tem; quem será esta criança, o que sente, o que pensa, que medos tem?

 

A capacidade de sonhar e ser criativo, diz-me muito acerca do desenvolvimento e estabilidade emocional de qualquer pessoa; esta criança quer ser astronauta, polícia, bombeiro, futebolista? Ou está de tal forma bloqueado que apenas encolhe os ombros perante estas questões?

 

Tenho sempre em mente que os cactos crescem no deserto, que as rosas precisam de água, que as orquídeas gostam de humidade; que isso não as torna normais ou a(normais), que são apenas características muito próprias e que resultam das suas especificidades.

 

É preciso cautela, porque os diagnósticos são como os rótulos das embalagens, são difíceis de retirar, deixam sempre a sua marca e alguns restos de cola; nem todos temos comportamentos semelhantes, e sei que os adultos analisam as crianças com olhos de adultos; por isso quando consulto uma criança, tento não me esquecer que numa sociedade de regras e padrões, onde tudo obedece a categorizações e normas, não quero ser mais um dos responsáveis pela crescente (a)normalização das crianças.

 

Rolando Andrade

Psicólogo Clínico

Psicoterapeuta

Psicólogo do Desporto

Cédula profissional O.P.P 4365

 

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